5 | é a pele que me veste do avesso

mari
2 min readSep 10, 2022

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Respiro fundo e continuo olhando pro teto, não consigo dormir. Parece tão simples, natural e óbvio dormir aqui agora e mesmo assim não consigo. Respiro fundo e continuo olhando pro teto. Sinto a respiração que respira fundo ao meu lado e me sincronizo a ela, quem sabe ela me dê carona aos sonhos que sonha, mas não. A janela está fechada, mas sinto que o dia começa a querer nascer pelo ar que já assume outra espessura. Meu corpo está alerta e só encontra paz.

"Essa sua cara eu nunca tinha visto" você me fala com as sobrancelhas franzidas de preocupação. E se eu te contar que eu também não? Nem eu reconheço mais meu rosto às vezes, nem eu sei dizer. Estamos me conhecendo ao mesmo tempo, talvez eu esteja até um pouco atrás.

"Pra onde você foi? Foi mais longe do que nunca agora" — Fui? Não sei dizer. Na verdade sim, fui sim, fui longe, saí daqui, mas pra onde? Ih, pra onde eu não sei dizer. Lugar nenhum talvez. Talvez na verdade nunca tenha saído daqui no final das contas, só fui pra dentro de mim e fechei a cortina por um tempo. É natural entrar e se fechar, não? Não mais, não aqui, não agora, não assim. O dia se faz tão bonito lá fora e dentro de mim algo ainda busca pelo escuro.

É a minha própria pele que me veste do avesso. O lado que nunca viu a luz, nunca sentiu o calor do sol e nunca entrou em contato com nada que não fosse eu agora é visto e recebe atenção. Aquilo que nunca foi tocado não faz ideia do que é receber carinho e se mantém alerta, ligado, pronto para reagir ao menor sinal de ameaça. Aquilo que nunca foi visto também nunca viu e não sabe o que é receber um olhar de cuidado. Tudo é novo. Tudo é estranho. Me sinto num corpo estranho. Eu sou um corpo estranho.

A pele que sempre esteve do lado de fora agora se viu pelo lado de dentro e ainda não aprendeu a não ser superfície de contato. Entro em contato com minha própria superfície pelo lado de dentro e vejo o quanto a vida a fez áspera. Pouco a pouco tudo começa a fazer sentido. Me sinto como nunca antes pelo que já fui e me abro para o que sempre fui e não fazia ideia.

Tudo bem demorar a dormir. Tudo bem estranhar o novo espaço que meu corpo habita. Só se alcança os sonhos deixando pedaços de si pra trás e ainda não sei bem como me deixar.

09 de setembro de 2022

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