01/02 — vidas inteiras em estradas esburacadas

mari
3 min readMay 17, 2022

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Passou-se um dia desde ontem, mas sinto que saí de casa uma semana atrás. Vi árvores paradas no meu futuro e observei enquanto elas aceleravam de velocidade até desaparecer no passado. Lembrei de você e sorri. Sorri muito, sorri o tempo todo. São engraçados esses dias que duram semanas, dias em que acontece tanta coisa que a gente até esquece dos detalhes e acaba virando tudo uma bolota só, uma bolota de memórias comprimidas. Memórias do que aconteceu agora misturadas com memórias de vidas inteiras empoeiradas trazidas à tona.

Percebi que nunca soube direito quem minha mãe era antes de ser minha mãe, tomei vergonha na cara e perguntei. Como foi a sua infância? Como era você criança? Do que você gostava de brincar? O que você fazia? O que você odiava? Você chorava muito? O que te fazia chorar? E adolescente, como foi a sua adolescência? Quem era você na escola? Como eram seus pais (e não meus avós)? Como eram suas irmãs (e não minhas tias)? Como era a relação entre vocês? O que você pensava? O que você sentia? O que você queria?

Perguntas tão simples que demoram a encontrar as suas respostas, que demandam uma busca extensiva dentro de gavetas dentro de armários dentro de quartos trancados e nunca mais visitados. Afinal… Por que não se pesquisar como se pesquisa um objeto de estudo? Por que não se interessar por si como se interessa por outras pessoas? Quem pode nos achar mais interessantes do que nós?

Perguntas que mostraram que, apesar de ninguém ter dúvidas disso, eu sou mais parecida com minha mãe do que imagino, apesar de totalmente diferente. Duas caçulas expressando em mini revoltas os seus grandes inconformismos, cada uma com um resultado diferente. Ela indo contra o que aprendeu e me criando como acreditou ser o melhor fez com que eu me tornasse quem sou hoje e pudesse voltar, pegar na sua mão e falar "vem, agora vamos juntas". Me orgulho de mim e me orgulho dela. Me orgulho de mim porque me orgulho dela. Me orgulho dela porque me orgulho de mim.

Busco tanto em meu passado a minha história que esqueci que minha história é feita de outros passados que não tem nada a ver comigo. Tudo aquilo que sou é um reflexo direto de como percebi meus pais enquanto criança, mas agora percebo que o que eu percebia era um pedaço minúsculo de todo o mundo que acontecia. Me liberto do que cresci acreditando ser o certo.

Ela ficou marcada pela vez que eu chorei desesperada porque a camiseta do uniforme que eu queria usar para a escola estava molhada e nenhuma outra servia porque eu queria aquela. Eu não tenho memória disso. Não se sabe como me fizeram parar, mas não foi como ela faria hoje, que seria se abaixar no meu nível e falar "eu sei que você está triste porque a camiseta que você queria está molhada, é triste mesmo, mas ela precisava ser lavada e agora não tem o que fazer, que tal usar outra só hoje e amanhã você veste essa?". Chorei. Minha criança interior se acalmou.

Eu tenho viva a memória do dia que vi minha vó matar uma galinha. Lembro do barulho do pescoço quebrando e da forma como ela o fez sem nem piscar. Lembro de ficar horrorizada ao ver enquanto ela a depenava e das penas sujas de sangue caindo num saco. Lembro de ver aquela mulher pequenininha girar as coxas amareladas e as arrancar num estalo. Lembro da textura da pele, do cheiro, de como ela foi servida à noite na mesa de madeira e comida por todo mundo. Minha mãe não lembra disso. Ninguém mais da família se importou. Hoje sou vegana.

Hoje, dentro de camadas e mais camadas de experiências de vida, terapias, armaduras e espinhos, quando fico chateada porque algo no meu dia não sai conforme o que eu tinha planejado a essência da minha chateação é a mesma que a da camiseta do uniforme. Ela quando engole o que sente para não incomodar ninguém engole da mesma forma que o fazia quando criança porque não era aceito o choro. Para sempre seremos as crianças que fomos, por mais adestrados que sejamos.

O tempo passou longo, mas passou leve. Fiquei rouca de tanto falar. Fiquei empolgada de tanto ouvir. Vez ou outra paramos para um café. Agora vou dormir.

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