07 — encontro de família

mari
3 min readMay 22, 2022

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Sempre quando eu ia para a casa dos meus avós eu acabava me descolando e deslocando do movimento. Normalmente ficava perambulando sozinha pelos arredores, explorando a paisagem, observando as plantas e os animais (coisa que se acentuou quando comecei a fotografar), brincando sozinha ou vivendo com meus pensamentos; mas quando me sentava nas rodas (geralmente na hora que circulava comida) era mais como ouvinte passiva do que qualquer outra coisa. Dessa vez escolhi fazer diferente. Dessa vez escolhi guardar o meu momento só meu para depois (agora) e me permiti me conectar. Não vou dizer que não estive voltada para dentro porque à essa altura não sei nem mais se sei sair de mim, mas diria ter sido um para dentro de fora num estado de escuta interativa, de observação participativa.

O que vi foi minha mãe e minha tia conversando como se fossem uma pintura, nelas as mesmas cores, os mesmos traços, as mesmas entonações. Ouvi de meu primo as minhas ideias e na sua voz os meus pensamentos. Vi na sua estante os meus livros e em seus planos meu futuro. Olhei para o meu vô e do meu vô para a minha mãe para a minha tia para a minha outra tia para a memória de me ver no espelho e de volta para meu vô. Vi os mesmos ossos em nossos crânios por baixo de peles parecidas em estágios diferentes, as mesmas sobrancelhas, os mesmos fossos dos olhos, as mesmas maçãs e a mesma falta de bochechas. Vi em meus primos o sangue que não compartilhamos. Vi nas mãos enrugadas de meu vô os meus ossos saltados e em minhas mãos jovens a juventude de minha mãe. Vi na foto de casamento de meus avós a minha firmeza na expressão austera de meu vô e no de minha vó a minha gentileza. Vi nessa mesma foto o rosto de minha mãe no corpo de minha vó e na vida real o corpo de minha vó no rosto de minha mãe. Ouvi na voz de minha prima a voz de sua irmã que é igual a de sua outra irmã que é igual a de minha mãe que é igual a de minha irmã que é igual à minha. Vi minha irmã no rosto de meu pai e na foto dela quando criança o meu sobrinho.

Sentada ao lado de meu vô eu não o enxergo e nem ele me enxerga, ambos olhamos para a frente em silêncio observando sem observar a movimentação frenética do resto da família. Vejo suas pernas longas, ossudas e uma vez ágeis ao lado de minhas pernas longas, ossudas e ágeis. Nossos braços descansam na mesma posição. Em nosso silêncio compartilhado o sinto como eu, será que ele me sente como ele? Será que um dia ele se viu em mim como eu agora pela primeira vez me vejo nele? Não tenho em meu nome seu nome, mas o tenho em mim. Vejo o filho de minha prima com o rosto de seu pai sentado por perto compartilhando nosso silêncio. Vejo nele meu passado e em meu vô nosso futuro. Entre nós três nada precisa ser dito.

Percebo que a única pessoa que tem a mesma exata linhagem que eu é minha irmã. Temos a mesma cor de cabelo, um cacheadíssimo e um liso onduladinho. Temos os mesmos olhos verdes de meu pai, os dela como água, os meus como folha. Temos a mesma altura preenchida nela com curvas e em mim linha reta. Temos pés de mesmo tamanho, os dela fofinhos, os meus pontiagudos. Temos o mesmo nariz, a mesma boca e os mesmos dentes que formam sorrisos diferentes. Temos a mesma voz com sotaques diferentes. Ela não estava aqui hoje, mas está sempre tão em mim quanto eu estou sempre tão nela.

Todos somos passado, todos somos presente, todos somos futuro. Somos todos partes uns dos outros. Somos todos nós de algum jeito e continuamos sendo como continuaram desde muito antes de nós.

Somos todos futuro.

Somos todos passado.

Somos todos presentes.

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