101 | tectectec no teclado

mari
6 min readDec 15, 2022

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Imagine essa cena: eu meio deitada meio sentada de shortinho verde e top azul na perpendicular na minha cama apoiada na parede debaixo do edredom, notebook no colo, garrafa d'água pela metade em pé ao lado da barriga, bacia de pipoca feita no ar quente sem óleo sem sal sem nada só pipoca uma atrás da outra sendo despejada na minha boca e às vezes algumas de uma só vez numa mastigação em ritmo constante sem parar sem acelerar sem diminuir o ritmo constante de uma mastigação sempre igual, iluminada só pela luz azul da lâmpada azul no abajur azul em cima do móvel branco. Oi, essa sou eu agora.

Pensei em falar sobre o momento que vivi hoje e que eu queria muito poder mostrar pro meu eu de 14 anos pra dizer que a vida fica boa, pensei em falar sobre quando subi no alto e vi a ponte e vi o lago e senti o vento fresco no rosto e pra ficar mais bonito ainda uma andorinha passou voando por cima, pensei em falar sobre o olhar curioso da criança que tem vergonha mas quer ver então se esconde atrás do que tiver na frente e fica olhando no olho mesmo porque não interessa cabelo nem roupa nem nada olha direto pra alma porque quer ver quem eu sou e não quem eu pareço ser e eu olhei no olho de volta e nenhum de nós falou nada.

Pensei em falar que eu fiquei pensando sobre quantas pipocas tem na medida de pipoca que eu faço e que será que eu consigo contar uma por uma que eu comer do começo até o final será que eu não vou perder a conta no meio será que eu consigo poxa fiquei com vontade de testar uma hora dessa eu vou fazer isso vou fazer pipoca e ficar o tempo que eu precisar ficar concentrada só em comer uma pipoca atrás da outra contando uma por uma do começo até o final e quanto tempo será que isso leva é sério eu vou testar fazer isso quem sabe na próxima vez que eu fizer porque agora já comi um tanto e começar no meio não dá tem que ser do começo até o final e aí eu vou saber exatamente quantas pipocas eu comi mesmo que isso seja completamente inútil e essa é toda a graça da parada.

Pensei em falar que pela primeira vez em um bom tempo eu chego aqui na frente da tela e simplesmente não sei sobre o que escrever não porque não tenho nada de relevante pra falar porque tenho até demais mas porque eu simplesmente não consegui ou talvez nem tentei porque não quis falar sobre o dia gostoso e tranquilo que foi hoje nem sobre o cheiro dos incensos naturais que fiz de hortelã e alecrim e manjericão e lavanda e boldo recém colhidos da horta e minhas mãos ficaram cheirosas e tudo ficou cheiroso ao som da voz que canta cheia de vontade e saudade e gosto de cantar as músicas que canta acompanhada pelo violão na tarde ensolarada à beira da piscina tomando café e comendo castanha na tarde ensolarada à beira da piscina.

Pensei em falar sobre alguma coisa das várias coisas que falamos mas não quero dessa vez colocar aqui conversas não por não querer expor nem por sei lá o que que poderia ser mas só porque não quero e querer não precisa ter motivo então eu não vou me explicar eu só não quero e isso basta porque sim.

Pensei em falar sobre não querer falar nada mas querer falar alguma coisa mesmo assim porque eu preciso escrever todos os dias e precisar faz parecer que eu não quero mas eu realmente quero e é por isso que eu preciso então eu faço e continuo falando aqui sobre o tanto de coisa que eu pensei em falar mas fiquei com preguiça de falar e mesmo assim dei um jeito de estar aqui falando sobre tudo o que eu pensei em falar mas não quis sem ter motivo nenhum porque não precisa ter motivo e falar que precisa ter faz parecer que tem e eu quero que não tenha mas na verdade é indiferente só não tem mesmo e nem toda falta é de algo tem falta que só é e se basta sendo vazio que não precisa deixar de ser.

Pensei em falar sobre esse ser o jeito que o meu pensamento funciona é assim que a minha mente pensa e quando você olha nos meus olhos esperando a resposta de uma pergunta que acabou de fazer e me vê pensar sem conseguir colocar nada em palavras e fico só fazendo expressões faciais enquanto claramente penso várias coisas por segundo e fico tentando falar sem conseguir é esse tipo de coisa que tá acontecendo dentro da minha cabeça e é por isso que eu faço várias caras que você não entende e nem eu consegui me acompanhar também e aí eu dou risada sozinha por perceber que cá estou eu há vários minutos em completo silêncio conversando comigo mesma enquanto você me olha nos olhos esperando uma resposta e eu já esqueci até da pergunta porque foi tanto tempo atrás e tanta coisa já aconteceu e eu percebo que eu comecei a rir do nada sozinha e eu dou mais risada ainda do fato de eu provavelmente estar parecendo uma completa maluca por começar a rir sozinha e rio tanto que não consigo mais parar e será que eu realmente sou maluca será que eu deveria me preocupar e agora eu parei de rir do nada e franzo a testa em preocupação e você ainda está me olhando confuso meu deus me desculpa eu entrei pra dentro de novo num momento que era pra ser compartilhado que merda e agora eu não consigo mais voltar porque meu pensamento já passou há muito tempo da velocidade que eu consigo falar eu preciso desacelerar desse jeito não dá não sai não passa é muita coisa ao mesmo tempo muito rápido meu deus eu

não consigo

respirar.

E quando eu fico sozinha em casa é isso que acontece quando fico sozinha em casa eu ligo a luz azul e faço pipoca e pego água e deito na cama com o notebook no colo e eu escrevo sobre alguma coisa que eu pensei em escrever e efetivamente escrevi sobre ela e eu olho pro teto azul e eu penso e penso e penso sobre um monte de coisa e sobre nada também e sobre como eu penso sobre o que eu penso sobre o que eu penso e o tempo passa e eu continuo ali pensando sobre tudo e sobre nada olhando pro teto azul sem realmente olhar pra nada só que agora eu olho pra tela e tagarelo tectectec no teclado do mesmo jeito que eu comia as pipocas uma de cada vez ou várias de uma vez mas sempre mastigando no mesmo ritmo sem parar e agora eu digito tectectec no mesmo ritmo uma letra de cada vez de uma palavra de cada vez e é por isso que não tem vírgula não tem pausa não tem nada só um parágrafo e outro de vez em quando porque de vez em quando eu preciso voltar para pegar um pouco de ar eu chega fico sem fôlego sabe de tanto pensar e é por isso que eu não tenho energia depois pra fazer nada porque pensar cansa e ainda mais quando é desse jeito é muito rápido sabe às vezes quando eu consigo em algum momento parar é como se eu estivesse realmente correndo aqui dentro a sensação é a mesma eu chega respiro fundo de tanto que eu me deixei sem ar de tanto pensar sabe.

Vou parar por aqui e deixar vocês aqui mas eu ainda vou continuar sozinha em casa na luz azul deitada na cama debaixo do edredom por mais um tempinho escrevendo mais um pouco ainda e quando eu acabar de escrever e for dormir eu vou desligar o computador e colocar ele em cima do móvel branco e desligar a luz azul e fechar a cortina e ajeitar os travesseiros e deitar na direção certa da cama e colocar despertador vou deitar a cabeça no travesseiro e vou pensar agora eu vou dormir e aí eu vou pensar mais um pouquinho só e vou começar a prestar atenção na minha respiração e aí pra dentro e pra fora e pra dentro e pra fora sentindo as costelas mexendo levantando e abaixando o edredom e provavelmente vai vir um mosquito fazer bzzz no meu ouvido e eu vou me mexer um pouco e ele vai sumir e eu vou prestar atenção na respiração de novo e na costela até que uma hora quando eu ver já vai ser amanhã e eu vou pensar nossa como eu dormi bem ou mal eu não sei um dos dois mas eu não sei ainda porque ainda não é amanhã e eu ainda não dormi eu ainda tô aqui deitada na luz azul perpendicular na cama com o notebook no colo fazendo tectectec no mesmo ritmo mas agora eu vou deixar vocês aqui e continuar só mais um pouquinho até eu parar mas agora eu vou deixar vocês aqui é sério.

14 de dezembro de 2022

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