12 — tudo bem ter medo

mari
3 min readMay 27, 2022

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Sempre fui uma criança medrosa. Desde que me lembro por gente eu gritava pela minha mãe no meio da noite pedindo para que ela viesse se deitar comigo porque tinha tido um pesadelo e acordado para a escuridão que me encarava. Se eu tentasse enfrentar o escuro sozinha acabava de olhos ardentes e arregalados até que o sol nascesse ou eu acabasse dormindo de exaustão.

Durante um período que comecei a ficar sozinha em casa pela tarde eu costumava pegar tudo o que pudesse precisar e levar comigo para o sofá, onde eu ficava completamente imóvel até que alguém chegasse. Se por um acaso eu precisasse muito fazer xixi e não desse para esperar, eu ligava para minha mãe e fazia ela ficar no telefone comigo até eu voltar para o meu lugar seguro, o sofá. Eu atravessava o corredor do prédio correndo porque ele era longo e se eu andasse normalmente dava tempo do que quer que respirasse atrás de mim me alcançar.

Do que eu tinha medo? Do vazio, do escuro, da sensação de não estar sozinha, dos fantasmas que me passavam a mão na nuca. Quando minha mãe percebeu essa história de eu não sair do sofá me levou de volta à uma psicóloga, o que ajudou muito como sempre. Lembro de um dia, depois de talvez alguns meses que mais pareceram uma eternidade, eu finalmente me cansar de viver minha vida daquele jeito, imóvel e fracassada. Peguei o meu fiel cabo de vassoura, minha arma contra os inimigos invisíveis, e num ímpeto de revolta me levantei do sofá. Desvairada e ensandecida comecei a gritar "SE TIVER ALGUÉM AÍ, APARECE AGORA OU NUNCA MAIS", "É SÉRIO", "VAMOS, APARECE SE TIVER CORAGEM, VAI", "VEM CÁ QUE EU TE MANDO EMBORA É AGORA". Ninguém apareceu. Num misto de alívio e decepção, limpei o sangue dos olhos e segui com a minha vida.

Não digo que nunca mais virei noites em claro de olhos abertos no escuro porque seria uma mentira, inclusive até hoje acontece às vezes, também chamei minha mãe várias noites ainda para dormir comigo até muitos anos depois, mas a força que eu consegui conjurar de dentro de mim naquele dia ficou comigo e quando me vejo paralisar é daquele cabo de vassoura que me lembro. Não apareceu ninguém quando aos gritos chamei, mas se tivesse aparecido o capeta em pessoa naquele dia eu, no auge dos meus 23 quilos, com certeza o teria descido na porrada.

Lembrei de tudo isso porque hoje passava um desenhinho infantil na televisão mostrando cenas de crianças com medo de algumas coisas e uma musiquinha falando para não terem medo, para serem corajosas; e pensei que não, não é assim não. Medo todo mundo tem, de uma coisa ou de outra, e negar a existência dele falando para não ter medo porque tudo está na sua cabeça é o que fez com que eu me sentisse completamente desajustada a minha vida inteira. Não é porque parece ser irracional que não é real, e tudo o que eu precisava ouvir quando criança era um "tudo bem ter medo, todo mundo tem medo" e assim poder juntar a coragem necessária para enfrentá-lo e não ficar paralisada, presa em uma guerra comigo mesma por não saber se podia confiar nas emoções mais intensas, profundas e viscerais que eu sentia.

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