155 | pouco importa o tempo que passou

mari
1 min readFeb 7, 2023

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Ela chora no banco de trás do carro como chorou pouco mais de um mês atrás enquanto conta sobre — ou tenta por entre as lágrimas e o nó na garganta — o dia pouco mais de um mês atrás quando aconteceu aquilo de novo que como sempre a faz chorar desse mesmo jeito.

Um pai que, com toda a fragilidade óssea de seus noventa e três anos de idade, faz a filha de cinquenta e cinco chorar como provavelmente fazia cinco décadas atrás. Nos olhos dela vejo a menina que nunca conheci porque cheguei depois, a menina que quando leva reprimenda do pai sente algo que não cabe a mim dizer porque entre a narração detalhada e repetida de todos os acontecimentos que a levaram até o momento do conflito, ela nunca falou sobre como se sente.

Mas ela chorou.

Chorou quase se desculpando por chorar, mas chorou como me confessou um tempo atrás que não se lembra de fazer quando era sua vez de ser menina. Talvez ela chorava e não se lembra, mas a memória que ficou é a de não poder chorar. Cinco décadas depois as lágrimas saem a contragosto, expulsas do corpo que não aceita um não como resposta por já estar se afogando de tanto se engolir.

6 de fevereiro de 2023

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