170 | irmãs

mari
4 min readFeb 22, 2023

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E nesse jeito da vida de jogar em nossa direção o que precisamos no momento certo, mais um livro caiu em minhas mãos. Ou melhor, eu o peguei com minhas mãos depois de inspecionar a estante de minha irmã pela milésima vez em busca de mais alguma preciosidade que deixei passar. E tinha. Uma preciosidade que ela mesma não achou preciosa, passou batido, não gostou, e talvez saber disso tenha me dado a dica que eu precisava de que esse seria um livro que eu iria gostar.

Não que a gente não compartilhe gostos, eu e ela, inclusive compartilhamos vários, mas nisso vou voltar um pouco mais para a frente, porque preciso falar um pouco mais sobre livros antes de chegar na minha irmã.

Eles tem esse jeito meio estranho de chegar nas nossas vidas, os livros, não tem? Uma recomendação tão enfática que vem com um empréstimo, uma troca inesperada, um presente aleatório, uma intuição que bate bem naquele pontinho e que te faz olhar para aquele lugar da estante e pegar algo na mão sem nem pestanejar. É a certeza do que vai ser bom. Aprendi a identificar essa sensação em mim e vou te contar que a vida realmente nunca mais foi a mesma. Posso ter várias inseguranças, mas algo em mim que eu tenho a maior segurança do mundo é na minha capacidade de saber escolher. Tamanha seletividade já me foi um pé no saco, mas se provou talvez o meu maior superpoder e entre tantas dúvidas eu a reconheço pela mais serena certeza.

Entre todas as dúvidas de ontem, hoje peguei na mão um livro que em sua primeira página já me colocou no lugar. Entendi. As peças se encaixaram e agora tudo faz um pouco mais de sentido, inclusive eu.

E agora volto à minha irmã. Como Bluey e Bingo no episódio do desenho animado que assistimos, conseguimos mesmo nascendo dos mesmos pais e crescendo juntas, sermos extraordinariamente diferentes. No elevador entramos eu, ela e sua própria família nuclear. No espelho ao seu lado vejo os mesmos olhos, o mesmo nariz e vez ou outra o mesmo sorriso, somos parecidas, temos traços parecidos, mas nada do que fizemos com esses traços que herdamos da mesma fonte se parece.

— Tu gostou mesmo do livro? Eu achei ele muuuuuuito melancólico — o tom de revirada de olhos em sua voz me é familiar até demais, mas nesse momento nem ligo enquanto luto para levantar os meus das páginas que estão me deixando completamente encantada.

— Siiiim, eu tô amando! Me identifiquei.

Rimos e a vida segue, ela fazendo suas coisas e eu lendo mais um pouquinho no tempo que tenho antes de sairmos para passear, que foi quando nos vi no espelho como falei ali em cima porque como de costume, não conto as coisas linearmente.

Eu me paraliso diante de tantos sentimentos e ela não para por um segundo de tantas coisas que faz. Cresci na sua sombra porque, sim, eu era a irmã mais nova e é isso que irmãos mais novos fazem, mas ela realmente sempre foi excelente em tudo o que faz, e sempre fez muito. Eu não tirava notas boas como as dela, não era participativa nas aulas, não era boa em esportes e não era agradável com as pessoas. Ela era perfeita e eu nunca chegaria aos seus pés, essa era a minha perspectiva. Do outro lado ela sentia que eu não gostava dela quando na verdade tudo o que eu mais queria era que ela, minha irmã perfeita, gostasse de mim.

Acho que até hoje nós duas nos chocamos pelo menos um pouquinho quando percebemos que a outra nos quer por perto. Em algum momento — quando paramos de morar juntas — começamos a nos enxergar como amigas e até hoje nos lembramos com amor da viagem que fizemos juntas só nós duas, mesmo levando em conta que se ela tivesse durado dois diazinhos a mais provavelmente teríamos nos matado. Eu teria feito um escândalo e ela teria discretamente ganho. Eu sempre faço um escândalo. Ela sempre ganha. Sairíamos as duas perdendo e chorando, porque é claro que essa morte não seria literal e temos isso em comum, eu e ela, nós duas choramos quando estamos com raiva.

Com gostos diferentes temos gostos parecidos e até hoje ela é a única pessoa que compartilha do meu ritmo frenético de maratonar séries. A vida não nos permite mais passar todos os dias de uma semana assistindo desde o acordar até o dormir, mas tenho certeza que assim que for possível sumiremos do mundo eu e ela juntas largando tudo o que somos para viver histórias inteiras de uma só vez.

No espelho vejo os genes que herdamos lado a lado e que formaram em cada uma de nós algo único. Fomos para lados bem diferentes dessa vida e num só relance já dá para notar, ainda assim nos encontramos nos mesmos olhos, no mesmo nariz, vez ou outra no mesmo sorriso e tenho a sensação de que quando estamos longe ela me encontra também em seu filho, que para a sua frustração — presumo— tem tantas coisas em comum com a criança que eu fui e que ainda mora dentro de mim.

Da nossa forma estranha nos equilibramos. Ela me leva a lugares que eu a mostro por outros olhos. Ela me move e eu a desacelero. Sempre nos vi como muito diferentes e foi quando logo nos primeiros dias dessa viagem depois de um ano sem nos vermos respondemos as perguntas que nos eram feitas exatamente da mesma forma exatamente ao mesmo tempo que eu percebi também o quanto somos iguais. Talvez eu tenha passado todos esses anos perto demais para ver com clareza ou tão longe que nos perdia de vista, mas parando no lugar exato a imagem se torna nítida: duas irmãs, peças de uma mesma engrenagem com formatos e funções diferentes, feitas para funcionarem juntas. Quando alinhadas perfeitamente, se encaixam e fazem a roda inteira girar.

21 de fevereiro de 2023

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