2 | te conto do meu dia

mari
3 min readJul 4, 2024

--

Uma quinta vazia enquanto dentro tudo vibra. Mais um passado aparece em sonho e chora enquanto segura nas mãos a minha intimidade sem querer largar. Tá bom, agora chega né, deu disso aqui. Pego de volta o que é meu, dobro e guardo no lugar.

Já te ouço dizendo que não falei nada, mas nessa noite não te conto meus sonhos pelo telefone, os conto por escrito como se fosse uma carta encontrada no futuro por quem não sabe de quem é e nem com quem fala. Gosto do mistério, eu sei, e te faço parte dele porque me permite, admite, vai, você também gosta.

Uma daquelas pequenas coisas que fazem minha alma brilhar, sabe, é quando estou observando o mundo daquele jeito que faço e pego um vislumbre de uma reação espontânea, real e quase imperceptível de rápida antes de o rosto voltar ao seu lugar de costume. A causa? O sobrenome da avó falado com a sua pronúncia original. Foram os olhos que sorriram, não a boca, numa contração tão minúscula que fez o rosto inteiro, por um momento inexistente, exalar amor. Foi um sorriso de lembrança, da risada no chão da sala, do bolo de chocolate e com cheiro de café… Eu não saberia dizer, não é minha essa memória, só a vi acontecendo pelo lado de fora.

Tomamos café entre cinco, ou melhor, dois smoothies e três cappuccinos, enquanto o dia queimava. Também tinham três línguas entre nós, nem todas cabendo em todas as bocas e já sinto a terceira na ponta dos dentes, só falta morder de uma vez e deixar sangrar.

Tomei três bolas de sorvete. L'altro pistacchio é o Outro pistache porque não tem leite nem ovo, e sei lá, tem gosto de castanha, Marco disse com os ombros. Sim, tem gosto de castanha, eu disse com os olhos. O misturei com chocolate amargo e morango na mesma lambida, e outra, e outra, e outra, até que se acabassem todos juntos de uma vez.

Aproveito o estranho conforto de estar entre pessoas que não tem nada a ver comigo e ainda assim tem, porque, afinal, estamos todos aqui no mesmo barco, pra perceber quem eu sou sem os contextos que me definem. Ainda sou artista se não estou cercada por artistas? O que é que eu respondo quando não há ninguém me ouvindo responder?

Lembro dos meus dezessete anos — gosto da palavra dezessete — quando, vinda da cidade de interior descobri a tal da cafeteria que te chama pelo nome. Numa cidade nova onde ninguém me conhecia, minha brincadeira comigo mesma se tornou me dar um nome diferente toda vez que eu ia. Ah, a liberdade de poder ser quem diabos eu quiser só pra perceber que sendo quem eu quiser sempre me encontro sendo eu.

Chegando em Brasília um homem me enche o saco no metrô puxando assunto e perguntando um monte de coisa sobre a minha vida. Você sabe, eu sou uma pessoa reservada, quem é que aquele dito cujo pensava ser pra ter acesso a quem eu sou? Menti, é óbvio. Toda uma vida tão diferente da minha e pronto, assim eu deixava de me sentir invadida. O tempo foi passando e cada raíz fincada no chão deixava invenção um cadin' mais próxima da sua prima mentira.

Ontem, depois de comer meu hamburguer, o pessoal da outra mesa me perguntou de onde eu sou. Brasil, respondi com um um ponto final e pelos quinze minutos de caminhada me senti culpada. Grossa, mal-educada, diziam as vozes na minha cabeça até que oxe, veio a minha com as mãos na cintura em minha defesa. Não era minha responsabilidade manter uma conversa que eu nem queria ter em primeiro lugar.

Não fui ver a palestra que eu queria ver e que fui ontem só pra descobrir que era hoje porque a tpm me alcançou, fazer o que, às vezes ela já chega ganhando mesmo. Deixa que ganhe, tô cansada.

Ah, comecei sendo misteriosa e agora digo sem poesia nenhuma que o passado segurando a intimidade nesse sonho foi o ex chorando agarrado às minhas calcinhas. Sonhos estranhos esses que ando tendo toda noite, viu, é só isso que tenho a dizer sobre esse enquanto bocejo, te dando a informação que eu sei que você vai pedir quando voltar à civilização.

E, falando nisso, espero que as árvores estejam conversando contigo, meu amor, e que você esteja ouvindo.

4 de julho de 2024

--

--