207 | o dia que você foi embora

mari
2 min readApr 1, 2023

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O ano era 2018, eu era outra.

Sentada nessa mesma cama em silêncio vi a silhueta de uma pessoa que um dia tanto amei preenchida de dor, mascarada de fúria. Os passos incertos pelo chão que se abriu sob seus pés e trôpegos pela visão turva de lágrimas procuravam pelo pequeno espaço os seus poucos pertences deixados para trás. Não há tempo nem para uma sacola e as roupas são carregadas de qualquer jeito nos braços, é preciso correr para longe desse lugar o mais rápido possível, é preciso correr para longe de mim e as pernas enrolam-se em voltas na esperança de me dar tempo o suficiente para voltar atrás.

Não voltei, fiquei. Um último beijo na frente do elevador ele pediu e eu dei sem querer dar. Um beijo estranho, salgado e sem gosto. Palavras cruéis largadas de qualquer jeito em meio a pedidos sem sentido. Farpas sussurradas. As roupas foram embora, mas as palavras ficaram, assim como eu. Impassível. Determinada a o ver ir e garantir que embora fosse. Seria o melhor pra nós dois, eu sabia, ainda que sabendo ser melhor pra mim primeiro. Um dia ele vai entender, eu me dizia. Não sei se entendeu, não sei de mais nada seu.

O ano é 2023.

Sentada nessa mesma cama enquanto conversamos vejo por inteiro a pessoa que me ensinou a amar encher malas e sacolas com seus pertences. O carro enorme não é grande o suficiente para levar embora quatro anos e meio e a tristeza que enche seus olhos escorre pelos meus em lágrimas doces. A vida compartilhada não é visível no que vai embora e me surpreendo com o quão fácil é separar as suas coisas das minhas depois de tudo o que vivemos juntos. São suas coisas que estão indo embora, você já foi faz tempo enquanto ainda estava aqui. Eu também fui, só que fiquei.

Nos abraçamos no quarto e na sala e na garagem e também nos abraçaríamos no elevador se os braços não estivessem ocupados. Fazemos planos, afinal, ainda temos muitas séries a assistir e nos agradecemos por tudo o que fomos e somos e ainda queremos ser. Palavras macias são trocadas, mas não tantas porque a garganta não as deixa passar. Os olhos sabem. O abraço também. Ninguém nos entende direito, mas nós sabemos, nos entendemos.

Dou as costas antes do carro sair e não te vejo ir embora.

30 de março de 2023

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