21 — estacionário

mari
2 min readJun 5, 2022

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Era para já estar em casa, mas ainda cá estou. Numa cama que por uns dias se tornou minha, num quarto que por uns dias se tornou meu e ao lado de uma garrafinha de água vermelha que por alguns dias foi minha única companhia. Ao mesmo tempo que a saudade do meu mundinho aperta, é incrível a capacidade do ser humano de se adaptar. O tempo passa e se deixar a gente vai ficando com ele cada vez mais temporário.

Hoje parece diferente, como se o próprio ar que respiro soubesse que eu não mais deveria estar aqui. Ele adentra minhas narinas em confusão e vai embora sem entender nada. Há uma ausência que repousa sob meus poros. Um silêncio que permeia minha voz. Tudo acontece, mas parece que não. Continuo andando em linha reta e estranho a paisagem que não mais me acompanha, o pôr do sol que não se põe, a árvore que não se aproxima, o pássaro parado em pleno ar. Percorro distâncias enormes dentro de uma pintura, me cansando por nada, mas agradecendo por poder ver em detalhes o que antes poderiam não passar de borrões.

Algo me parece óbvio, eu só não sei o que é. Um lençol invisível que foi estendido por cima de tudo e permanece imperceptível a não ser pela sensação do tecido que roça em minha pele. É impossível negar sua presença ao mesmo tempo que pouca diferença ela faz. Uma caixa cheia largada num canto do quarto. Um copo com água esquecido em cima da mesa por semanas até alguém passar por ali e o beber. Um chinelo aposentado e solitário que há muitos anos perdeu o seu par. Um pote de farinha na geladeira que ninguém sabe quando chegou e ninguém pretende utilizar.

O vento que entra pela janela mais parece uma planta de plástico, tão real que quase engana. O tempo passa sem passar. Algum número decimal foi, com certeza, trocado de ordem em algum lugar. Vírgulas brotam como ervas daninhas povoando de pausas frases corridas. O dia se estende em sua própria duração, o sol chega e vai embora, trabalho é feito, comida é comida, conversas são conversadas, boa-noites são distribuídos e sozinha adentro a madrugada em câmera lenta enquanto meu corpo se molda ao descanso.

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