226 | trauma número 427

mari
2 min readApr 19, 2023

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Meu primeiro lar foi uma casa assombrada. A morte havia passado por ali e se fez constantemente presente pelos rastros ensanguentados que arrastou pelas paredes, o mesmo sangue que corre em minhas veias e salta aos olhos através da pele translúcida do peito. A conheço desde antes de nascer e por isso ela não sussurra em meus ouvidos, eu ainda não tinha ouvidos quando a conheci. Ela não se comunica comigo, ela sou eu e eu sou ela, a morte e eu andando juntas dentro de um mesmo corpo, a morte que existe antes mesmo de haver vida, o medo, a angústia, a dor, o sangue, tanto, tanto, tanto sangue…

Há um mundo fora daqui, fora do conforto do meu primeiro lar assombrado. Um mundo gelado e a mim brutalmente apresentado. Um mundo solitário que me faz querer voltar ao meu medo familiar.

Choro. Preciso de alimento antes de saber o que é precisar e muito menos o que é alimento. Recebo veneno. Tenho fome. Veneno. Não quero. Fome. Minha primeira e única forma de nutrição me faz mal e por meses tudo o que entra em meu corpo é veneno. O primeiro prazer apresentado como dor. Choro por querer, choro por precisar e choro por não querer mais. Experiências diferentes assimiladas como uma só. Alimento dói. Prazer dói. Amar dói. Tenho medo que corre em minhas veias. Só se vive doendo. Tenho medo de viver.

Parece que por um tempo o único jeito que eu conseguia dormir era de exaustão depois de tanto chorar. Parece que por um tempo o único jeito que minha mãe conseguia fazer com que eu mamasse era enquanto eu dormia. Involuntariamente bebendo veneno. Inconscientemente bebendo veneno. Tenho medo de estar inconsciente.

Choro e faço aquela que me nutre chorar, a única que conhece a casa assombrada como eu, afinal, foi ela que nos carregou. De um trauma compartilhado um laço foi formado. Uma mãe que não consegue entender o que causa tanto sofrimento à filha que é incapaz de se fazer compreender. Tudo o que tem é o choro e sua dor dói também na mãe, tão exausta quanto ela, sua dor é um inconveniente a todo mundo ao redor. Logo aprende a evitar o alimento. Logo aprende que é melhor doer em silêncio.

Pequenas instâncias de um primeiro trauma permeiam tudo o que faço e atravessam pelas rachaduras que os tombos da vida me dão. Aprendizados aprendidos antes da linguagem e que não conseguem se fazer comunicar. Não há palavras que alcancem tão fundo e a vida na superfície só não me é uma realidade.

18 de abril de 2023

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