23 — entrelaços

mari
3 min readJun 7, 2022

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Ontem falei que o tempo nos faz temporários. Uma frase que saiu sem eu pensar e que desde então não me deixou. Sinto que é uma daquelas frases de efeito que me parecem vazias agora, mas que daqui há alguns meses — ou dias — quando eu voltar para reler vai fazer todo o sentido do mundo o porquê de eu a ter usado quando usei. É óbvio que sim, como que não? Sinto também que hoje não consigo fazer muito sentido, mas nem tudo precisa sempre fazer sentido.

Fiquei pensando que se tirarmos o tempo, o que nos resta são os toques que deixamos nas outras vidas que acontecem de acontecer perto das nossas. Acho que ainda tenho interestelar muito fresco na memória [inclusive nem te contei, mas narrei o filme inteiro durante a viagem de carro para minha mãe e ela, anja, ouviu tudo incrivelmente interessada; me senti de novo quando eu tinha 12 anos e passava o tempo inteiro desde que ela chegava em casa até me mandar dormir pela milésima vez contando em detalhes o livro que eu estava lendo] e isso me faz pensar no quão insano é vivermos seguindo à risca as regras de um tempo que é bizarramente relativo.

Sempre me senti meio fora do tempo e tenho mais facilidade de circular ao seu redor do que na linha que ele traça. Fico nadando por perto das cordas de boias de natação que ficam estendidas ao longo das piscinas olímpicas [o que instantaneamente me traz o cheiro da carne com queijo e pimentões verdes na chapa que o pai vegetariano da minha melhor amiga da 2ª série sempre pedia de almoço para nós no clube] sem nunca nadar na direção que elas propõem. Ao mesmo tempo que anos se passaram e tanta coisa mudou, quando eu, minha irmã e minha mãe choramos de rir juntas sentadas em uma cama nenhum tempo se passou e nada mudou.

Não me lembro de nada dos meus primeiros anos de vida, tudo o que acho que lembro vem de fitas e fotos de viagens, feriados e tardes tediosas de inverno que minha mãe teve a perspicácia de registrar e fico pensando no quão insano é saber que meu sobrinho não vai lembrar de pelo menos quase nada do que está acontecendo em sua vida agora. Ele não vai lembrar que nessa época gostava de pular e correr em círculos no mesmo lugar comigo. Ele não vai lembrar que hoje li para ele pela primeira vez suas historinhas.

O que talvez fique é, espero, a sensação de familiaridade na minha companhia. Ele não vai lembrar que assistimos desenhos juntos no sofá, mas talvez fique algum resquício de conforto em sentar ao meu lado em silêncio independente do que esteja passando na tv. Ele não vai lembrar que temos o mesmo gosto para biscoitinhos, mas talvez goste de comer a comida que eu sirva em minha casa.

São os toques que ficam gravados em algum lugar, um momento de entendimento e compartilhamento de qualquer coisa. Um olhar simultâneo e uma risada genuína. Não lembro dos meus primeiros anos, mas durante esses dias sinto que, mais do que vivendo esses de agora, estou vivendo de fora o aglomerado de todas as nossas vidas. De alguma forma ainda assisto as fitas que continuam sendo gravadas.

Vejo claramente como todos nós chegamos aqui muito antes de estarmos aqui. Quais os caminhos que nos trouxeram até hoje e onde eles dão. Vejo os processos que individualmente vivemos e que se entrelaçam nesse momento para que possamos tocar em algum ponto familiar. O melhor a fazer, às vezes, é não fazer nada, não dizer nada e apenas compartilhar de um momento fora do tempo que se torna eterno em toda a sua magnífica insignificância.

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