231 | um encontro com a besta

mari
2 min readApr 27, 2023

--

O cachorro é da família e não vai fazer nada até que faz. Como se reage a tamanho susto? O adulto se impede de chorar e em algum lugar ali dentro uma criança de olhos arregalados soluça em silêncio. Ela não foi protegida e já que não é permitido chorar se enche de raiva. O olhar desesperado da avó que não pode fazer nada. A impotência sentida por todos os lados faz crescer a raiva e os ânimos gritam quando tudo o que querem é chorar. Medo faz um negócio dentro da gente que preenche o corpo de desespero. Ele precisa ir para algum lugar e, já que o choro não é coisa de quem sabe se virar, cozinha por dentro e ferve em ódio.

Já passou, dizem, não foi nada. Podia ser pior. Já passou sim, não é por isso que não permanece. Não foi nada. Como pode não ser nada se ainda dá pra sentir acontecendo? Não precisa chorar. E o que faz com essa necessidade que empurra os olhos pra fora das órbitas então? E o que faz com o coração que quase escapa pela garganta feito peixe pulando pra fora do aquário? O que é que faz com tudo isso que foi sentido e que continua circulando na corrente sanguínea se espalhando célula por célula até ocupar o corpo inteiro? O que é que faz com o medo pela própria vida? Com o olhar que viu de perto o instinto assassino? Não, por favor, não peça pra engolir tudo isso.

Tem gente que perde a reação e tem gente que se torna reação, quando os dois polos se encontram há de haver um choque onde já estava tensionado. Tem o medo que paralisa e o medo que agiliza, que transforma emoção em ação e precisa fazer algo porque a alternativa é explodir de pavor ou de culpa por não ter estado presente, por não poder fazer nada a respeito, por não poder salvar quem mais ama das presas afiadas do inesperado.

Tem que deixar a gente processar o que acontece, sabe? A gente precisa falar sobre, porque quando alguma coisa acontece tudo o que a gente mais quer é falar sobre, e quando tudo se transforma em resolver o problema ele nunca se resolve porque é preciso deixar que doa o que doeu. E quando se tenta diminuir o que foi sentido o que diminui é a abertura e quando a gente não encontra espaço pra se abrir é aí que a gente aprende que mais seguro é se fechar. Só que não é. É preciso deixar que passe sem pressa, que se volte quantas vezes precisar e que se sinta. É urgente que se sinta. É urgente que se deixe sentir.

23 de abril de 2023

--

--