246 | depois da tempestade, lidamos com os destroços

aérea
4 min readMay 8, 2023

Estive funcionando em estado de sobrevivência e não sei bem quando isso começou. Talvez tenha começado lá atrás com o cinema, quando eu tinha crises de ansiedade toda vez que ia embarcar em uma nova viagem de trabalho mesmo sabendo que iria ser uma experiência incrível — e sempre acabava sendo. As grandes aventuras e a boa relação com o resto da equipe não eram o suficiente para me impedir de hiperventilar e começar a chorar toda vez que uma pessoa que eu gostava muito vinha me chamar para um novo trabalho até o ponto de eu desistir por completo de uma área que eu amava por sofrer constantemente com o estilo de vida que ela demanda.

A pandemia com certeza também levou tudo a um nível absurdo quando uma simples ida ao mercado se tornou questão de vida ou morte. Entope tudo de álcool milhares de vezes, lava a mão copiosamente, toma cinco banhos por dia se esfregando até quase cair a pele de tanta secura e briga pela milésima vez com a única pessoa com quem você convive há dois anos porque ela não trocou de roupa antes de sentar na cama. NA CAMA!!!! COM ROUPA DE RUA!!!!! Quando o único efeito das minhas reclamações era me fazer chata parei de falar enquanto a ideia da contaminação me corroía por dentro.

E depois da vacina a vida voltou ao normal contra todos os meus instintos de preservação e subitamente tudo está acontecendo de novo e de uma só pessoa todos os dias passa a ter várias pessoas por dia e os estímulos não param de esmurrar meus sentidos e toda a vida exatamente igual à qual me acostumei vira de cabeça para baixo. Você tá sendo exagerada, mari, já pode ir, já pode viajar, não tem mais perigo. E sentindo com tudo dentro de mim que ainda não era hora viajei para ver minha família depois de dois anos e adivinha só, lá peguei covid e apesar de ter sido tranquilo comprovou que meus medos não são infundados, que na verdade eles estão corretíssimos.

Ser invadida pelo mundo externo antes de me sentir pronta foi ser derrubada do topo da árvore sem saber voar. Planei um pouco, mas caí. Fui caindo devagar, pouco a pouco vendo o chão se aproximando e gastando toda a minha energia tentando fazer as asas fracas e atrofiadas baterem.

E quando minha única constante nisso tudo arranca mais um tanto do chão sob meus pés aí que tudo foi por água abaixo mesmo. Fiquei perdida, sem referência de baixo e nem de cima, de fora e nem de dentro, fiquei sem referência de nada. A realidade e como eu a percebo numa pintura surrealista, meu sentir se torna a única fonte na qual posso confiar, minha única companhia e uma realidade mais real do que qualquer outra realidade esquisita nessa bagunça toda que se tornou tudo. No escuro total só sei que estou caindo porque é isso que sinto.

Meu lado racional se desligou, afinal, de que ele me serve quando absolutamente nada faz sentido? Pouco a pouco me perdi e me afoguei em mim, ninguém pode me ajudar, afinal, todo mundo está se afogando da sua própria maneira. Pessoas me buscam querendo ajuda e cada vez menos consigo escutar, cada vez menos consigo entender, cada vez menos consigo estar presente. Meus ouvidos estão debaixo d'água, não me dá pé aqui, não se apoia em mim que a gente vai afundar! Mas não consigo falar nada, minha boca também está debaixo d'água.

Perdi a confiança num dos meus melhores atributos, o pensamento. Perdi a confiança no mundo. Perdi a confiança de que tenho controle sob qualquer coisa na minha vida e aceitei tudo o que a mim veio enquanto me segurei firme até doer os dedos na única coisa que tenho no meio disso tudo: eu. Perdi a força e com ela a capacidade de me defender ou de lutar pelo que quero, perdi a vontade, perdi a direção, perdi a capacidade de ser assertiva, de determinar meu caminho, de confiar que eu sei alguma coisa. Perdi a coragem e o pé no chão, perdi meus sonhos e me perdi de mim.

Começo a me lembrar de quem eu fui e me pergunto se estou acordando ou dormindo. Parece que esse diário se tornou registro do declínio da minha saúde mental e as pessoas começam a vir falar comigo preocupadas. Não quero preocupar ninguém, mas foi não querendo preocupar ninguém que passei tanto tempo fingindo e me enganando que estava bem, agora acho melhor falar as coisas como são e agradecer por ter quem se preocupe comigo.

Vocês tem razão, é de se preocupar e euzinha estou particularmente assustada. Acho que isso é bom. De um grande surto vieram vários entendimentos e pouco a pouco volto a fazer o que sei que me ajuda a me manter firme e sólida dentro de mim como sei que posso ser, apesar de quase não conseguir mais me lembrar.

8 de maio de 2023

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