319 | enfim só

mari
2 min readJul 20, 2023

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Ontem quando acordei logo veio minha mãe entrar no quarto chorando. Que foi? Perguntei, lembrando de quando essa pergunta veio acompanhada da notícia de que meu gato havia morrido. Não que eu achasse que algo tão trágico quanto havia acontecido, mas já aprendi que quando qualquer evento sai do esperado a primeira opção a dar as caras em minha mente é a tragédia — pelo tanto de catástrofes que já presenciei em minha imaginação, poderia-se supor que eu estaria mais preparada quando alguma realmente acontece, mas não, aparentemente é só estresse que crio de graça — então espero pacientemente pela resposta antes de permitir que meu corpo reaja.

O que aconteceu foi que ela tinha acabado de ler o texto que escrevi sobre o dia do acidente. Nunca sei como reagir quando alguém me diz ter chorado ao ler algum dos meus textos e, na dúvida entre agradecer ou pedir desculpas, fico em silêncio. Essa não é a primeira vez que ela se comove com algo que escrevo e quão ambivalente é o sentimento de inspiração a continuar pois meu objetivo sempre foi sacudir o que está dentro e ao mesmo tempo a vontade de não escrever nunca mais. Demorei a lembrar dessa palavra… Ambivalente… Logo ela que tem sido uma grande constante nas sessões de terapia.

Esteve sendo difícil escrever nesses últimos tempos — minto, estaria sendo difícil se eu estivesse tentando, o que de fato não foi o caso — e me pergunto até que ponto o fato de eu estar convivendo intensamente com as duas pessoas que mais me leem interfere no processo. Muito, suponho. Ainda não sei se prefiro que leiam em silêncio ou se comentem comigo quando as duas alternativas me deixam arrepiada. A intenção era meio que essa também no final das contas, não? Me acostumar com a sensação de ser vista com as entranhas à mostra?

Faz pouco mais de um mês que me acidentei e à essas horas quatro semanas atrás eu estava com a cara inchada, queimada, me questionando se um dia meu lindo rostinho voltaria ao normal. Agora parece ridículo e já parecia desde lá, mas hoje me sinto ridícula estando confortável por dentro da minha pele. Me acostumei a ser vista sem maquiagem, mas ainda fico desconfortável ao cair de havaianas num almoço de sandálias. Onde é que fica a linha que o mundo traçou em volta de mim e chamou de adequação?

Desde o acidente o mundo girou rápido e girou muito e eu levada pelo ritmo do mundo fiquei tonta, mas cicatrizei. O novo começo se materializa nas paredes que me cercam e, quem diria, me descobri como a pessoa que tem rosa na porta de casa.

20 de julho de 2023

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