340 | talvez se eu te explicar você entenda

mari
9 min readAug 11, 2023

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15:50. Estaciono o carro. Que sorte, encontrei uma vaga bem na frente da locação. Já consigo enxergar as várias pessoas carregando equipamentos. Respiro fundo. Vamos lá, vai ser bom, eu consigo, vai ser super tranquilo. Respiro fundo mais uma vez. Abro a porta do carro e saio. Dou a volta na quadra porque prefiro chegar pela lateral do que pela frente, não me peça para explicar, eu também não sei, mas o importante é chegar, não é mesmo, e eu cheguei.

— Oi amiga, tá boa? Que bom te ver! — Ana me abraça daquele jeito dela e me apresenta a parte da equipe que eu ainda não tive a chance de conhecer. Oi, oi, oi, oi. Tudo bom? Tudo bom, tudo bom? Tudo bom.

Joãozinho está desenrolando um cabo ao lado das câmeras já bem encaminhadas. Vou para perto dele e pergunto como é que vai ser.

É o seguinte: o trabalho é fazer a transmissão ao vivo de um evento. Vão ter várias pessoas falando no palco que ainda está sendo montado e três câmeras: uma fixa num plano aberto; uma na mão, solta para acompanhar movimentações e detalhes da plateia; e uma num tripé móvel num plano fechado no rosto de quem estiver falando. Joãozinho vai ficar com a câmera na mão, eu vou ficar com a fechada e a fixa, em teoria, é só montar e deixar.

— Agora a gente tem radinho — Ana fala e me entrega um. São três radinhos também: um para mim, um para Joãozinho e um para ela, que vai ficar na frente dos monitores, assistindo tudo e escolhendo para qual câmera cortar.

Ajudo como posso na montagem do equipamento, o que não é lá grandes coisas porque já faz tempo que não trabalho com eles e nem sei mais o que vai onde, muito menos o que temos disponível nas várias malas espalhadas pelo chão, mas tudo bem porque temos tempo de sobra para preparar tudo e ainda vai sobrar, afinal, o evento começa só às 19h. Em teoria.

— Ou — chamo — tá dando um glitch aqui, é isso mesmo? — Uma pergunta burra porque não é para câmeras darem glitches, mas da última vez que fiz um freela para essa produtora lembro de terem comentado que tinha uma com defeito.

Testamos mexer nela um pouco, mas o problema continua. Que merda, mas ainda bem que temos tempo. Ana manda o recado e logo mandam outra para a gente trocar.

Ok, não tem mais o que fazer agora, só esperar. É uma tarde agradável e estamos frescos, sentados ao ar livre. Me dou bem com Joãozinho e gosto de trabalhar com ele, apesar de ainda ter vívida a lembrança desesperadora da vez em que ele saiu para almoçar e nunca mais voltou, me abandonando para me virar sozinha no departamento de câmera de um set absolutamente caótico. Fiz o que pude e o que não pude me virando em mil para dar conta. Ao fim do dia fui muito elogiada e caí nas graças de várias pessoas, então sei lá, só não faz isso de novo por favor. Conversamos sobre música e trocamos várias referências, também sobre filmes de nomes longos e nossas experiências na área. O tempo passa devagar, mas a tarde está tranquila.

— Vamos lanchar — Ana chama. Tem café, glória aos deuses, e o tomo sem açúcar como aprendi a tomar trabalhando com cinema. Café é café, especialmente no meio da madrugada, e bom ou ruim você o bebe agradecendo, o importante é sempre ter — Ih, tu é vegana né? Putz, eu esqueci, desculpa amiga, vou deixar anotado aqui do lado do teu nome pra nunca mais esquecer, não vai se repetir. — Tudo bem, respondo, como uva e bebo café. Ainda bem que almocei pra caralho.

As pessoas começam a chegar e o burburinho vai crescendo. Elas passam por entre as câmeras de qualquer jeito e para o nosso desespero. Gente, pelo amor de deus, dá a volta por favor. Isolamos a área com uma fita que deveria fazer o público entender que aquela era uma área restrita, mas não, aparentemente ninguém tem a mínima noção e continuam passando por entre nós para se poupar dos cinco passos necessários para dar a volta até o outro lado.

Outros fotógrafos e pessoas com câmeras chegam invadindo o nosso espaço. Tá tudo bem, vocês podem ficar aqui também desde que não nos atrapalhem, mas falem alguma coisa ao invés de só chegar e largar os seus tripés de qualquer jeito do nosso lado. Achei rude.

19h30.

— Que hora cê acha que vai começar? — Me pergunta Joãozinho.

— Acho que umas 20h — respondo.

— É, eu diria umas 20h, 20h10.

— Bom… Que seja um trampo suave — digo.

— Que seja um trampo suave — ele responde no radinho com o microfone ligado. Apertamos as mãos com os olhos e sorrimos.

Nem vi que hora que realmente começou, mas tenho certeza que passou disso. A multidão nos cerca respirando em nossos cangotes e a música alta começa a ensurdecer. Ana fala coisas no rádio que não consigo entender, mesmo apertando o fone contra o ouvido. Chegou a hora, pode dar rec. Vamos lá.

A apresentadora começa a fala e os ânimos começam a se elevar. Não tinha caído a ficha até então, fui inocente em nome do otimismo, mas ouvindo sua voz estralando no microfone entendo de súbito e em pânico o que está prestes a acontecer. Eu já estive nesse evento antes, em tantos como esse, ouso até dizer que cresci estando aqui. Respiro fundo. Não vai ser um trampo suave.

O pedido para que as pessoas saiam da frente das câmeras teve de ser anunciado no microfone depois de nós e várias outras pessoas tentarmos em vão limpar a área. Ana chega correndo e nos ajuda a subir os tripés para desviar das cabeças que tampam a lente. Algumas continuam a passar por debaixo das nossas fitas e por entre as câmeras, pisando nos cabos e se justificando em nome de estarem acompanhando as palestrantes. Não importa quem você é e nem com quem você está, meu anjo, estamos aqui trabalhando.

Meus olhos de águia permanecem focados no monitor da câmera desde o momento que iniciamos. Não consigo desvia-los porque não consigo travar a câmera, afinal, as pessoas que gritam não param de se mexer por um segundo caminhando de um lado para o outro do palco. Nos foi falado que elas estariam sentadas nas cadeiras dispostas para elas ali, posicionamos as câmeras estrategicamente para essa posição e não as culpo por ocuparem o palco como quiserem ao falar, eu sei, não é o trabalho delas se preocupar com as câmeras, é o nosso, mas que é um saco para a gente, é, então xingo mentalmente.

Várias pessoas são chamadas ao palco e todas elas falam basicamente a mesma coisa gritando à plenos pulmões com microfone colado na boca, o mesmo microfone que está ligado em um amplificador voltado diretamente para a nossa cara. Foi um bom público que se juntou, mas mesmo assim, deve-se ouvir tudo claramente à quilômetros distância nesse volume. Talvez tenha sido essa a intenção, mas mesmo assim, olho para o senhor que cuida da mesa do som em súplica, mas ele não me enxerga.

Ana fala coisas no rádio que não consigo ouvir por cima do barulho.

— Se for comigo — respondo — não tô ouvindo nada.

Joãozinho sai do meio da multidão e aparece ao meu lado para traduzir o que ela disse. Faço os ajustes que ela pediu.

— Essas pessoas tão te atrapalhando? — pergunta. Aceno com a cabeça que sim ainda sem conseguir tirar os olhos da câmera e nem a mão do manche, a parte do tripé que controla a movimentação. Ele fala com elas e pede pela milésima vez para liberarem a área porque estamos transmitindo ao vivo e o equipamento é sensível.

Uma moça quer porque quer gravar vídeos com o seu celular, então é claro que se enfia em qualquer buraco que consegue encontrar, no caso, o buraco ao lado do meu cotovelo direito, o mesmo que precisa de espaço para controlar o manche e dói pela posição desconfortável com a qual precisa segurar todo o peso da câmera. Quando bate palmas, ela também esbarra no meu cotovelo e no cabo, causando interferência na imagem e fazendo com que a Ana precise vir até ali para pedir para ela se afastar um pouco, algo que eu já pedi várias vezes.

— Tudo bem, era só pedir — ela responde, ofendida, e dá um passo para o lado. Menos de dois minutos depois ela esbarra no meu cotovelo de novo.

— Tá impossível ficar aqui — ouço a voz de Joãozinho no ouvido, vinda de algum lugar no meio do público logo antes dele voltar com olhar de desespero para o nosso espaço inutilmente delimitado exatamente no meio da coisa toda.

Os discursos falam coisas certas carregadas de ódio, ódio esse direcionado para longe daqui, mas que cresce e transborda de cada um dos vários corpos presentes e que me cercam, ódio esse que passa violentamente por mim.

Sinto minha cabeça tremer para a direita em um tique nervoso que se repete toda vez que o barulho tem um pico. Não ouço mais vozes, só ouço barulho, ruído de ódio. Assisto os rostos que enchem meu monitor e que trazem à tona tantas memórias sem que eu consiga desviar os olhos e lágrimas escorrem pelo meu rosto.

— Mari… — Ana fala em meu ouvido algo que não consigo entender. Assumo que é o mesmo que antes e tiro um pouco do teto da imagem— FOCO — consigo entender entre um grito e outro, limpo as lágrimas dos olhos e a respondo sem palavras ajustando o foco que me escapou por um segundo.

Inspira, Mari. Repito para mim. Expira pela boca. E solto o ar que sai trêmulo e em pulsos pelo peito apertado. Inspira… Expira. Inspira… Expira. Aguenta firme. Aperto com força a mão solta na perna do tripé. Olho ao redor no breve momento em que consigo e constato que, mesmo se eu pedisse para me cobrirem por um momento para eu tomar um ar, tentar me espremer por entre tantos corpos para sair dali seria tão ruim quanto ou ainda pior do que ficar, então aguento firme e aperto as unhas na mão livre com mais força. A dor, infelizmente, me ajuda a diminuir um pouco os outros sentidos.

— Pode cortar — Ana fala no rádio no momento em que começam a descer do palco e a multidão começa a se dispersar. Joãozinho aparece ao meu lado e começamos a desprodução no meio do caos.

Me falam que já posso ir embora, mas fui muito bem treinada para sair antes que o trabalho tenha terminado, então ajudo a carregar tudo para a van. Conforme as pessoas foram indo embora fui voltando a conseguir respirar, apesar das mãos ainda baterem frenéticas na lateral da perna por toda a tensão acumulada, o ar, pelo menos, já passa mais leve pelas narinas.

Falaram sobre o meio ambiente em alguns momentos dos discursos, isso eu ouvi, sobre a importância de cuidar do planeta e tal. É nisso que penso enquanto caminho olhando para o chão cheio de latas de cerveja amassadas, guardanapos, garrafas d’água, copos plásticos e mais uma grande variedade de lixos que não estavam ali duas horas antes. Há uma lixeira bem grande aqui ao lado.

Van carregada, dou tchau para as pessoas queridas que também estão doidas para chegar em casa. Entro no meu carro e ali fico sentada imóvel por alguns minutos. Ponho as músicas famosas por expulsarem de mim todos os demônios e dou ré. No caminho de casa, aumento o volume da música e grito. Grito alto. Grito forte. Grito gritos que saem rasgando o peito e a garganta de um jeito que eu sei não ser nem um pouco saudável e que estouram os meus ouvidos já completamente estourados. Quando os gritos secam, desligo a música, abro os vidros e começo a chorar um choro violento que sacode para fora de mim todas as violações que meu corpo sentiu nesse pequeno espaço de duas horas.

Estaciono na garagem, tiro as sacolas do carro, subo elevador, abro a porta, dou um oi sem graça para os gatos e vou direto para o banheiro lavar de mim toda essa nhaca. Esfrego com sabonete de sal grosso a pele ressecada enquanto repito sai de mim, sai de mim, sai de mim em voz alta. Saio do banho, visto o roupão fofinho, pego uma cerveja e o resto da sopa de ontem e me largo no sofá, sozinha na casa completamente escura.

Foi por isso que eu saí dessa área, foi por isso que eu comecei a buscar cada vez mais por uma vida que me seja menos hostil e foi logo depois disso que ouvi o que soou aos meus ouvidos exaustos como a culpa é minha por me deixar afetar.

10 de agosto de 2023

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