343 | perséfone

mari
3 min readAug 14, 2023

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Feito quebra-cabeça quando bate o desespero de com-certeza-tem-peça-faltando, mas você continua, insiste no tédio, insiste no fracasso, insiste nas peças que não fazem sentido nenhum até que, numa certa manhã, passa ao lado da mesa e encontra aquela desgraçadinha que faz tudo se encaixar. A vida às vezes tem dessas.

Talvez a parte mais difícil do meu trabalho seja olhar nos olhos de quem não aguenta mais e falar que vai ter que aguentar mais um pouco, vai ter que se fuçar mais um pouco, vai ter que segurar as pontas porque ainda falta um tanto para sair do outro lado. Mas existe um outro lado e talvez o mais difícil na verdade seja não poder passar o que eu vejo lá na frente a quem sofre no agora.

Tenho vislumbres da imagem final na tampa, não o suficiente para gravar todos os seus detalhes, mas o suficiente para ter uma ideia do rumo que as coisas vão tomar. Não posso mostrar o que vejo, primeiro porque não sei se sou capaz de converter abstração e simbolismo de uma maneira satisfatória e segundo porque falar sobre o que vejo pode fazer com que a imagem se altere.

É de uma delicadeza muito grande indicar sem sugerir, guiar sem conduzir e transmitir sem passar e nem sempre sinto minhas mãos estáveis o suficiente para um trabalho tão sutil. Enquanto isso, sei que foi para isso que elas foram feitas. Minhas mãos, minha mente, meus sonhos e meu corpo leve e aerodinâmico com o formato perfeito para voar bem alto e enxergar a vista de cima.

Me encontram em busca de respostas e respostas não sou eu que posso oferecer, elas não me cabem pois cabem só a quem pergunta responder. Respostas nunca vem de fora e as que vem não foram feitas para nós, não nos servem como roupas feitas sob medida para um corpo que não o nosso, por mais parecido que seja.

Entendi o meu lugar. É o lugar do inexato. Em outros tempos eu disse que o que fazia era trazer uma luz para quem caminha no escuro, mas não, não acho que seja isso. A luz tem o seu propósito no reino lá de cima. A escuridão foi feita para que não sejamos guiados somente pela visão, pela mente, pelo racional. No escuro total ouvimos melhor e nossa pele se acende, sente mudanças de temperatura e sinais de presença. No silêncio ouvimos nosso próprio coração e o sangue que corre em nossas veias. Sem enxergar, sentimos o chão sob nossos pés sem saber onde pisamos. No escuro não seguimos caminho nenhum, o encontramos e o criamos um passo de cada vez, com medo e sem certeza.

Não ofereço luz porque ela simplifica o que por natureza deve ser complexo. Ofereço o conforto de uma companhia silenciosa, vez ou outra uma mão que possa segurar até que recobre as próprias forças. Caminho junto a passos leves para que não se sobreponham ao som dos seus e aguardo pacientemente para que se perceba no contraste a pressa em sair correndo.

Eu também me perco no escuro, sabe, mas encontrei meu reino no assombro do submundo.

13 de agosto de 2023

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