348 | não choro porque cansei de eu mesma ter que me segurar

mari
4 min readAug 19, 2023

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O apartamento já está inundado pela luz do dia com exceção do quarto que permanece escuro apesar da hora. O celular na cama toca de quinze em quinze minutos uma música que já ficou tão impregnada que se mistura ao sonho. A mão, ainda dormindo, tateia em busca do som e o desliga apertando em algum dos botões, mas não consegue desligar os gatos que se revezam na missão de miar na cara da sua humana de estimação. Querem comida? Nada. Os potinhos ainda estão cheios. Querem é que ela acorde por algum motivo que vai além da sua compreensão nesse momento.

Abro os olhos e a primeira coisa que faço é acariciar a cabeça laranja que me encara de perto. A frustração se torna amor quando meus olhos se encontram com os olhos do gato que mia pedindo por atenção. A segunda coisa que faço é olhar no celular a frase do aplicativo de astrologia que todo dia dá um jeito de alfinetar do jeito certo. Who holds you when you cry?* Suspiro e me dou por vencida.

Levanto, abro a cortina, vou ao banheiro, faço xixi, escovo os dentes e respondo a mensagem da mãe perguntando se pode ligar com um peraí rapidinho. Na cozinha preparo o café da manhã porque não importa a hora que seja, quando se acorda se toma café e essa é a ordem das coisas. Onde é que já se viu almoçar logo que acorda, eu ein, não nessa casa.

Depois de ajudar com o problema e botar um pouco do papo em dia sento na frente do computador e termino meu café enquanto jogo um joguinho. Perdi e perdi feio, que pena. Decido ler e pego o livro que no dia anterior explodiu minha mente. Quem diria que depois de ler tantas coisas diferentes encontraria validação para a minha experiência sensorial do mundo justamente em um livro de cinema de horror comprado muitos anos atrás e esquecido na prateleira? Os olhos que ontem se prenderam nas páginas parecem hoje ter perdido toda a cola e correm de um lado para o outro do quarto em busca da distração que chega em forma de mensagem.

É um convite para jogar um outro joguinho instalado no computador também anos atrás e nunca jogado com os amigos com o qual tenho querido estar mais perto. Foi divertido, apesar de não ter entendido muito bem como se joga e só ter vagado por aí coletando itens a esmo e precisando ser ressuscitada por alguém que, diferente de mim, sabia o que estava fazendo.

A fome bateu sinalizando que a hora do almoço já há muito passada havia finalmente chegado. Geladeira aberta e o brócolis bonito chama mais atenção do que a comida pronta, a bandeja de cogumelos mais ainda. Parece que vai ser isso. A saudade, presente em forma de sombra o tempo todo, assume forma na foto do preparo enviada por quem quer contato, mas não tem nada a falar.

O sorriso acende o rosto que ainda estava com a cortina fechada. Mesmo na correria de um dia cheio de novidades a continentes de distância a resposta chega e chega rápido. Um dia rápido do lado de lá, um dia lento do lado de cá, lento, mas lento mesmo, tão lento que quase para.

Depois de o prato ser quase todo limpo o dia já dá sinais de se pôr. Respondo mensagens. Faço listas. Organizo coisas que precisam ser organizadas. Faço o pedido de mais frascos para os florais porque eles já estão acabando e faço um estudo prévio dos que vou preparar amanhã. Sou boa nisso, penso enquanto identifico questão, problema e solução em poucos minutos. Tem uma boa terapeuta dentro de mim que precisa de mais espaço pra atuar.

Tomo banho e passo creme na pele ressecada e irritada pela seca brutal dessa época do ano. Preparo um chá, estendo as roupas que esqueci o dia inteiro na máquina e me deito na cama pronta para escrever outro texto que não esse.

A tela se divide em duas.

Do lado esquerdo a luz roxa do abajur inunda o quarto onde nada se move a não ser os dedos que digitam no celular. Do lado direito a luz roxa dos holofotes inundam a platéia de pessoas vestidas de preto que se reuniram ali para viver um show, ou melhor, três. Do lado direito também tem dedos que digitam no celular.

Agradeço por conversar comigo nos intervalos, tá deixando a experiência muito mais gostosa, você disse. No dia de hoje foram seus intervalos que deixaram meu dia gostoso, quem agradece sou eu. VAI COMEÇAR CARAIO AAAAAA TE AMO ATÉ DEPOIS

Meu próprio corpo produz a substância que se espalha pela corrente sanguínea anestesiando a pele que aguarda paciente pelo toque que tanto lhe faz falta, enquanto isso o mesmo sangue se despeja pelo meio das pernas. Só me resta escrever.

— E nesse momento metalinguístico tenho mais um dos déjà vu que comentei estar tendo aos montes. Se esse é da escrita ou do que escrevo sobre… Já não sei dizer.

Acabou, a tela do celular se acende enquanto acabo por aqui também. Nosso timing… Impecável como sempre.

19 de agosto de 2023

*Quem te segura quando você chora?

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