Hoje chorei lembrando.
Lembrando de quem talvez eu não tenha me permitido lembrar muito desde que lembrando chorei até não conseguir mais respirar.
Larguei seu nome em meio a tantas frases como se fosse nada, a banalidade me tomou de susto e parei de falar. Que foi? Você perguntou como sempre pergunta quando me ausento da minha própria face. Só tava lembrando aqui… Largo a resposta no ar, desisto de responder. Tenho essa mania feia de colocar um só na frente de tudo o que sinto, mas dessa vez não consegui deixar passar, não é nem um pouco só. Ela não é nem um pouco só, e nem tudo o que lhe aconteceu.
Consegui contar depois de começar a chorar e chorando continuei contando das gargalhadas durante os dois anos em que ela morou com a gente. Contei de como me criou daquele seu jeito barulhento, de como ignorava minhas birras, de como ria do meu bico e das cócegas. Contei também das cócegas e das brincadeiras brutas que me faziam chorar de desespero implorando para parar só para depois voltar correndo pedindo mais. De novo, de novo, de novo….
Contei sobre como foi difícil a ver em pele e osso conforme a doença tomava conta de seu corpo ainda novo. Ver o couro cabeludo que costumava abrigar longos cabelos ora pretos, ora ruivos e ver também o fantasma do braço que costumava se enfiar debaixo das minhas costelas. Contei mais pra mim do que pra você porque não consegui colocar tudo isso pra fora, mas talvez os olhos fixos no vazio tenham te contado essa história por mim, ou talvez eu esteja contando só agora.
Não acompanhei de perto a longa e árdua batalha, mas fiquei sabendo sobre todas as formas em que se agarrou com tudo o que tinha na última borda. Na penúltima vez em que a vi, num momento de respiro, de alívio e esperança e com a cabeça cheia de curtos cachos castanhos, me puxou pro lado e ela que nunca vi na vida ser séria na iminência da própria morte foi, me olhou nos olhos e perguntou se eu estava feliz. Era só isso que queria saber.
3 de setembro de 2023
