54 | foi por isso, foi assim

mari
2 min readOct 29, 2022

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Nascemos com um eixo próprio e tomamos tanta pancada da vida que começamos a entortar. Entortamos tanto que nem percebemos mais nossa própria inclinação, tudo o que somos construído em cima de uma base fora da medida. Chega a ser estranho pensar em quem seríamos se simplesmente voltássemos ao que era desde sempre para ser, tão estranho que parece errado. Aprendemos que o nosso certo é o torto, o lascado, o rachado e não deixa também de ser, mas também acho que às vezes o melhor é deixar que tudo se rasgue mesmo, que caia e se quebre por inteiro porque me parece ser o único jeito de ver o que sempre esteve ali dentro, preso, escondido, guardado.

Pois me quebrei, me lasquei e me deixei me destruir até que no final restasse apenas espaço vazio. A fortaleza que já foi impenetrável ruiu e como campo aberto você me conheceu pela segunda vez. Caminhamos por sobre os nossos escombros conversando sobre toda a história que nos levou até ali, narrando nossas batalhas internas e admirando os resquícios de nossas vidas como se fossemos museu.

Nos encontramos capengando e nos segurando pela unha nos últimos fios que ainda insistiam em nos manter no lugar. Ainda não sei dizer bem se os soltamos, se eles se arrebentaram ou se aprenderam a se alongar, mas sei que não lutamos mais para nos segurar, agora desenozamos nossos fios e os usamos para tecer tapeçarias belíssimas que expomos com orgulho em nossas salas de estar.

Entendo cada dia mais sobre a vulnerabilidade que eu já jurava conhecer tanto e vejo como ela nunca se esgota, só se expande. Ela preenche os espaços deixados vazios e, por nos encontrarmos já ocos, nos preencheu quase que por completo. A intimidade que só cresce vai mostrando cada vez mais as frestas que passamos vidas inteiras tentando esconder. Rimos. A inocência de achar que aqui teria como esconder alguma coisa chega a ser cômica. Não, entre nós não há fachadas e nem vitrines, somos o que somos exatamente da forma como conseguimos ser e, sem tentar sermos perfeitos, acabamos sendo perfeitamente nós.

Não nos deram nenhum papel para interpretar e também não fomos atrás de descobrir o que deveríamos fazer, apenas fomos indo e indo fomos, nos sendo e nos fazendo enquanto caminhávamos sem rumo. Agora olhamos para trás e vemos que sem nem pensar sobre saímos da estrada e cortamos vários caminhos, andamos muito, mas a companhia é tão leve que nem sinto o tempo passar, posso tranquilamente andar muito mais. Ainda não sabemos para onde vamos, talvez porque o objetivo não seja chegar, e sim passear por essa vida muito louca admirando o que há de se admirar, tentando fazer sentido do que não parece fazer e aprendendo o máximo que conseguirmos pelo caminho.

28 de outubro de 2022

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