81 | aérea quem?

mari
2 min readNov 24, 2022

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Passo em frente ao espelho e prendo meu próprio olhar. Quem é essa que me olha? Qual das tantas eus que moram ali do outro lado, tão longe e tão perto, qual das tantas eus que me olha de volta dessa vez? Me demoro para me dar espaço de aparecer. Bicho arisco, selvagem, vive lá no alto sempre acima e fora de vista guardando a vista toda só para si. Olhar de interrogação penetrante e afiado espeta e fura tudo ao seu alcance, não quer saber de capas ou embrulhos, não quer saber de armaduras nem de enfeites, quer ver o que tem dentro de tudo isso, quem é o ser que escolhe tudo o que veste por cima de si.

Bicho arisco, selvagem, passa em frente ao espelho e enxerga algo novo a se enxergar. Encara com atenção como encara todo o resto e demora a perceber que essa é a sensação de estar do outro lado da própria pele. Demora a perceber e depois que se percebe se demora ali, absorvendo tudo o que envolve a experiência de estar em sua própria proximidade. Nem sempre se gosta, às vezes se apavora, outras se admira, mas em todas se demora até que consiga se reconhecer.

Pode passar a vida inteira a se esconder de tudo e de todos, mas é no momento que começar a se esconder de si que definitivamente se perdeu. Quando passa tempo demais só se deixando ver por outros olhos se esquece que tem a força necessária para sustentar o próprio olhar. Não importa quem encontre no espelho arqueia as costas, endireita a postura e se rasga por inteiro. Bicho selvagem em pé, ensanguentado e ainda vivo sob as próprias entranhas à mostra, se lembra que não é presa e sim predador.

24 de novembro de 2022

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