Minhas pernas tremem tanto que sentada mal consigo me manter em pé, respiro o mais profundo que a respiração rasa me permite e seguro meu coração com as mãos bambas. A cada minuto repasso em minha mente que escolhi estar aqui justamente para me expor ao medo de me expor.
Tensiono meu corpo inteiro na tentativa de relaxar. É só cantar, mari, só isso. Cantar leve como faço em casa sozinha, como faço no carro, só isso, só solta, vai! E não vai. Agora! Não foi. Agora. Hesito. Agora? O rosto do professor paciente espera tranquilo pela voz que não chega nunca, que sai sem querer, sai sem sair, deixa o pé na porta, espia pela fresta, se dobra em si mesma, fecha o zíper, coloca o capuz, anda pela sombra, senta no fundo, esconde o rosto, abaixa a cabeça, encolhe os ombros.
A tagarelice desenfreada da minha mente esconde o chiado que ecoa constantemente ao fundo pelo botão de PERIGO que já veio emperrado de fábrica. Basta um leve toque para que ele continue pressionado e às vezes nem isso, pois o sistema elétrico foi feito meio às pressas e nem sempre dá conta de toda a descarga que recebe, é só aumentar a corrente um pouquinho e pronto, pane no sistema, luzes vermelhas piscam em alerta e sirenes ensurdecedoras soam no máximo. A voz não sai porque já se perdeu de tanto gritar aqui dentro sem conseguir se ouvir.
O shhhhh não sai da minha mente e quando sai continua vibrando pelo corpo, tensionando todos os músculos que encontra pelo caminho. Sei que não foi sua intenção, pai, eu sei, mas na sua tentativa de me fazer agradável e aceitável você fez da minha pele o mais perfeito isolamento acústico. Tanto barulho aqui dentro e nada se ouve do lado de fora. Barulho que poderia até quem sabe ser música se conseguisse sair, mas preso no espaço apertado rebate pelas paredes e me ensurdece de tanto ruído.
Busquei por tanto tempo na câmera uma forma de me ver fora de mim, mas só encontrei um rosto inexpressivo. Princesinha, bonequinha. É fácil ser bonita, digo sabendo que corro o risco de soar extraordinariamente babaca, difícil é só ser eu. Odeio a vitrine e ainda assim não consigo sair dela. Esmurro o vidro com toda a força e só faço sangrar as mãos, mas é alguém passar do lado de fora que petrifico, não importa quem seja, às vezes nem chego a ver. O detector de movimento identifica qualquer alguém se aproximando e pronto, barriga encolhida e sorriso de plástico. Na vitrine não sou humana, sou boneca de porcelana.
Tão bonita, por que fica se estragando desse jeito? Por que faz maquiagem pesada assim? Para de chorar e sorri porque esse rostinho é lindo demais para fazer cara feia. Menina bonita não pode fazer cara feia, não fala alto, não come assim, não brinca assim, não senta assim. Menina bonita não grita, não fica emburrada, não faz escândalo, não chama atenção. Shhhhhh. Tá fazendo escândalo, as pessoas vão ver. Fala baixo. O que é que vão pensar? Não esquece que tá fora de casa e fora de casa tem sempre alguém olhando. As pessoas me conhecem, filha, eu sou figura pública, as pessoas te enxergam, te conhecem, sabem quem você é, as pessoas vão falar depois, o que é que as pessoas vão falar? Fala baixo. Fica quieta. Senta. Para com isso. Tá chamando atenção. Para de fazer escândalo. Fica quieta. Fala baixo.
A revolta corre por minhas veias sedenta por sangue e não encontra saída. Quem sangra sou eu. Morreu de hemorragia interna. Nem o sangue pode aparecer. Menina bonita não pode chamar atenção. Menina bonita não pode sangrar. Só pode ser bonita, menina.
Pera…
Será que falei demais?
Deixa eu reler. Acho que exagerei. É, devo estar exagerando. Preciso suavizar, mascarar um pouco. Tá feio. Passei do ponto. Os olhos cansados correm em zigue-zague em busca de eufemismos, qualquer um, qualquer coisa que seja menos, precisa ser menos, menos, mari, menos, beeeem menos.
Criança criativa, vai ser artista quando crescer, pena que é tão tímida, precisa ser menos tímida, precisa fazer teatro, precisa aprender a se expor. Mas não aqui, viu? Não agora. Só em casa, fechada, sozinha e talvez nem mesmo assim. Na rua tem que ficar quieta, no restaurante tem que ficar quieta, em casa tem que ficar quieta, no espelho tem que ficar quieta. Cabelo colorido? Chama muita atenção, não? Não corta tão curto, menina bonita tem o cabelo comprido. Essa maquiagem não é muito estranha não? Muito artista, ela. Tão criativa. Tão expressiva. Tem que botar para fora. Mas não muito, só um pouco. Não aqui. Não assim. O que é que vão pensar? Olha ela, que orgulho, tão criativa. Olha lá ela, mas só enquanto estiver bonita.
Em outra vida eu devo ter morrido enforcada, brincava eu quando criança mostrando para as amigas as linhas marcadas no meu pescoço. Também devo ter levado uma flechada na garganta, apontava para a marquinha pequena bem no meio dela. Sinceramente? Nem duvido mais, mas de qualquer forma ainda sinto o apertar da corda e é só abrir a boca que a ponta afiada chega perfurando o fluxo de ar.
Chego em casa e me olho no espelho. Maquiagem bonita, rosto bonito, olhos furiosos. Molho os dedos e os arrasto cílios abaixo. Já diz o livro, if it’s purple, someone’s gonna die, e já que não consigo tirar de mim meu próprio sangue, sangro pelos olhos o rímel roxo.
The death may not always be literal. It may not always be someone but something that will die or be lost when purple appears onscreen. It might be love or youth or dream or illusion.
29 de novembro de 2022