87 | todas somos Marcela

mari
7 min readDec 1, 2022

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— Oi, bom dia! Teria como eu fazer esses exames hoje ainda?

A recepcionista abre a boca para me responder, mas é interrompida por uma voz de urgência chorosa.

— Moça? Quanto falta pra minha vez? Vai demorar muito ainda? É que minha bexiga tá. Muito. Cheia…

Ao meu lado Marcela. Ela se curva sobre si mesma e caminha parada no lugar. Não sei dizer quantos anos tem, mas me lembro exatamente de como era estar nesse corpo já adolescente com a voz carregada ainda de infância.

A moça não soube responder, a menina agradeceu, pediu desculpas e desapareceu de novo na enorme sala de espera.

Agora a recepcionista se volta para mim. Posso fazer hoje, mas vou ter que esperar de uma a duas horas. Tudo bem, eu espero. Vai bebendo copos d'água, você vai ser chamada pelo nome. Ok. Obrigada. Encontro um lugar vazio ao lado do filtro e me sento. Penso que vou esperar para começar a beber água para não acabar como Marcela, afinal, provavelmente vai atrasar o horário.

Pego meu celular e vejo a bateria claramente não suficiente. Na pressa por sair de casa quase atrasada de manhã não peguei carregador nem livro nem caderno nem nada. A bolsa grande cai vazia em meu colo carregando apenas carteira e chave do carro. Tudo bem, fazer o quê, vou esperar.

É incrível tudo o que se percebe quando não preenchemos o vazio com o celular. Respiro o ar condicionado gelado e me integro ao espaço. A sala gigantesca é realmente muito bonita e bem decorada, cheias de esculturas e quadros e rostos cansados.

A espera não me incomoda. O frio não me incomoda. As crianças brincando e chorando ao fundo não me incomodam. O que me incomoda é o barulho de celular da mulher que acabou de se sentar ao meu lado.

Ela passeia pelo instagram sem tirar o áudio e sem efetivamente ouvir nada, apenas passando de um ruído ao outro, cada um perfurando mais fundo meu ouvido. Sempre tem um sem-noção, né? Penso comigo mesma imaginando ser uma pessoa mais velha, afinal, sabemos que essa é uma característica estabelecida da outra geração.

Me surpreendo ao ver uma mulher de blusa listrada em seus trinta e tantos, o que faz o barulho incomodar mais ainda. Parece que é só sem-noção mesmo. Olho para ela na esperança que entenda meu apelo silencioso, mas não, os ruídos já se tornaram silêncio para ela.

Cogito encontrar outro lugar para sentar, mas nesse momento Marcela chega caminhando com pressa e larga o corpo no sofá. Algo está errado. Algo está muito errado. Ela senta de pernas cruzadas e esconde o rosto na mão cheia de anéis. Sua mãe se senta, séria, ao seu lado e outras duas meninas com cabelo igual ao seu a cercam brevemente antes de irem embora. Ela permanece completamente imóvel, se tornando mais uma escultura de decoração para a sala.

Mulher aprende logo cedo a guardar a dor dentro de si e Marcela sofre em silêncio. A necessidade de passar despercebida é o que chama atenção e o tamanho de sua dor é denunciada apenas pelos olhos que querem chorar, mas se seguram para não ser de novo e como sempre a pessoa que chora; pela pressão com que as pontas dos dedos seguram em pé a cabeça que só quer se enfiar no primeiro buraco que encontrar e nos ombros encolhidos na vã tentativa de retornar ao útero da mãe, que se senta impassível ao seu lado.

Me incomoda a frieza da mulher e sou inundada pela vontade de me sentar mais perto da menina, lhe estender a mão e deixar que a aperte com força. Sinto nela a frustração que já em mim tantas vezes antes.

— Vai ao banheiro então, Marcela, depois você enche a bexiga de novo.

A menina fica em dúvida. Ela precisa aguentar, mas não aguenta mais. Sabe que não adianta reclamar porque não tem o que fazer, mas que se for aliviar seu sofrimento pode fazer atrasar para todo mundo. Depois de um longo argumento dentro da sua cabeça, ela se levanta e sai decididamente insatisfeita consigo mesma, denunciando em cada passo pesado a culpa de não conseguir fazer nada direito.

A sala inteira participa da cena em silêncio.

— Tadinha, quer ver que agora que ela foi eles vão chamar? — Comenta outra mulher— É sempre assim. — Isabelle concorda com a mãe com um levantar de sobrancelhas.

A mãe de Marcela, finalmente sozinha, conta sobre como está ali com as trigêmeas e a mãe de noventa e quatro anos, sobre como chegaram 7 e meia da manhã para os exames agendados para as oito, sendo que a médica chegou às nove e agora é dez para o meio-dia.

Me dou um tapa na cara mental por ter me deixado enganar. Julguei injustamente sua frieza quando na verdade o que se vê é a concentração de quem carrega uma família inteira nas costas, uma só responsável por tantas. Se ela fraquejar, todas caem. Alguém precisa se manter racional, alguém precisa segurar as pontas. Não descobri seu nome, mas a partir desse momento a chamarei de Vera porque vi nela o rosto da minha mãe.

A médica abre a porta e chama por Marcela. A outra mãe solta um falei, ao que Isabelle concorda com mais um levantar de sobrancelhas, dessa vez acompanhado por um leve aceno de cabeça. Vera avisa com indignação mascarada de indiferença que a menina não aguentou e foi ao banheiro e a médica fala que agora vai ter que esperar mais porque precisa estar cheia para poder fazer o exame. Marcela reaparece em tempo de ouvir essa última parte e solta um único, curto e último resmungo.

— Não, eu consigo — A voz sai trêmula, mas o rosto endurece. Resignada a não ser a pessoa que estraga tudo, ela anda a passos largos até o filtro d'água e com os olhos transbordando de lágrimas que escorrem para dentro enche um copo atrás do outro enquanto vai os bebendo de um só gole.

— Vai com calma, Marcela, senão você vai enjoar bebendo rápido assim — a médica fala para o vento enquanto a menina continua virando todos copos de uma só vez, essa é sua batalha e ela precisa vencer a qualquer custo. Depois do que me pareceram litros, ela caminha de queixo erguido e olhos vermelhos para a sala do exame.

A sala inteira acompanha a cena. Agora todas nos conhecemos. Todas já fomos Marcela. Todas somos Marcela. Todas torcemos por Marcela, ela só não sabe disso ainda.

Isabelle, que se manteve em silêncio até então, sente uma pontada e se encolhe no sofá.

Tá doendo muito? — A mãe pergunta.

Tá insuportável.

Mulher aprende logo cedo a guardar a dor dentro de si e ela já é um pouco mais velha que Marcela, mas ainda mais nova que eu.

A mãe me vê bebendo mais um copo d'água e pergunta se eu também vou fazer o maldito exame da bexiga cheia. Falo que sim. Elas me olham com simpatia e desejam com um sorriso boa sorte. Isabelle dessa vez vai fazer outro e ao lembrar disso resolve ir ao banheiro simplesmente porque pode. E vai. Fico feliz por ela enquanto bebo minha água em pequenos goles.

Levanto e vou me sentar em outro lugar mais próximo de onde vou ser chamada para não correr o risco de não ouvir e perder a vez.

A pequena Isabela rodopia incansável no meio da sala, exercitando a criatividade dos pais que a cada dois segundos precisam pensar em algo diferente para manter a menina entretida. A mãe pega o celular por um segundo e a menina começa a chorar, puxando a almofada da poltrona e fazendo, na verdade, qualquer coisa para ter a atenção de volta à si.

O pai a chama e a diverte de várias formas diferentes, dando uma folga para a mãe que ainda carrega na barriga mais um. Um pai que conhece tão bem a filha que sabe exatamente o que ela quer e a diverte sempre estando um passo à frente das várias emoções da menina. Um pai sendo tão pai que mais parece mãe.

— Igual um feijãozinho né? — a voz vem de trás da parede — Da próxima vez que a gente vier já vai estar maior.

Uma menininha de macacão colorido e maria-chiquinhas aparece no corredor de mãos dadas com a mãe e o pai com cara de cansado logo atrás. A família se senta nas cadeiras em minha frente e reconheço a mulher da blusa listrada que me incomodava com o barulho do celular.

Julia conversa feliz com a mãe, ela está animada com a ideia do bebê que logo vai chegar para brincar com ela, então faz uma gracinha e tenta chamar a atenção do pai, muito concentrado no vazio à sua frente.

— O que que eu já falei sobre essa língua? — o tom de voz de reprimenda é a sua única contribuição. A mulher logo recebe seu laudo e vão todos embora almoçar no shopping ao lado.

A pequena Isa dá gargalhadas com as brincadeiras de seu pai.

Pouco a pouco a sala vai se esvaziando. Marcela, suas irmãs, sua avó e Vera vão embora. Isabelle e sua mãe vão embora. Isa e seus pais vão embora. Permaneço.

Quando dou por mim me tornei Marcela. Depois de muito calcular o meu nível de necessidade, me levanto com dificuldade e ando em passos trêmulos até o balcão para perguntar à mesma recepcionista quanto tempo falta para a minha vez porque já passou do tempo previsto e minha bexiga está prestes a explodir. Mascaro o desespero com a voz calma e controlada.

Sou a próxima, finalmente. Agradeço e volto ao meu lugar.

Os pés batucando no chão são a única denúncia do meu extremo desconforto, o rosto impassível me transforma na mais nova escultura para decorar a sala. Minha mãe não me acompanha, então assumo em mim o seu lugar, afinal, mulher aprende logo cedo que precisa se carregar sozinha, então faz o que precisa fazer e guarda a dor dentro de si.

30 de novembro de 2022

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