ela, a porta

mari
2 min readSep 15, 2021

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Mais uma vez aqui. O ar tem a mesma leveza de sempre ao entrar em meus pulmões, e por lá rodopia feliz antes de sair escorregando pelas narinas. Inspiro algumas vezes de olhos fechados sentindo o saltitante oxigênio dentro e fora de mim. Um sorriso surge em meu rosto. Eu brincava muito quando era criança, mas nunca imaginei que iria brincar com o próprio ar. Ainda bem que cresci. A grama verde sob meus pés é como uma vasta cama de almofadas, afofando o caminho para qualquer direção que eu siga. Não que nesse lugar direções façam qualquer sentido, pois só uma existe, indo para a ela. E lá está, enorme e imponente como sempre. No meio de um vasto campo sem nada ao redor além de grama e ar, uma porta.

Não é uma porta comum, muito menos incomum. Ela é. Seu excesso de familiaridade atenua os detalhes extravagantes e desconexos. Passo os dedos sob sua madeira aveludada, sentindo a maciez com a qual ela me toca (menos no cantinho direito próximo ao chão, lá tem uma única farpa solitária onde aprendi a não mais me espetar). Nem clara nem escura, sua cor é um marrom vivo de árvore saudável e suculenta. Os desenhos entalhados nela mostram cenas de um mundo desconhecido, amontoadas e misturadas umas nas outras como em Guernica. Tento entender, mas me perco da narrativa no encanto e esqueço o que fazia. Ando em círculos ao seu redor. Ela não leva a nada, não faz nada, não se prende a nada, apenas fica lá, parada e erguida no meio do nada.

A maçaneta quase do tamanho da minha cabeça é de um dourado queimado, antigo, riscado. A única parte da porta inteira que ameaça mostrar a sua real idade, embora eu duvide que seja real de qualquer forma. Não há fechadura e nem chave, apenas porta. Depois de uma eternidade a admirar, coloco as duas mãos na maçaneta e tento girar. Ela desliza sem mostrar resistência alguma e por ela puxo a porta, andando de costas e usando o peso do meu próprio corpo para a abrir. Solto e vou para a frente dela, que poderia ser atrás, e é o mesmo nada que vejo, o mesmo campo e a mesma grama. Atravesso o seu portal e vou para lugar nenhum, não me sinto diferente e não vejo nada novo. Me viro de frente para ela, aberta. Inspiro. O ar saltita para dentro de meus pulmões e desce escorregando pelas minhas narinas.

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