Pensando agora já não me lembro mais dos momentos que escrevi. Pera, me expresso mal, não me refiro aos momentos que escrevi sobre, não, esses seguem vivos em tons de azul e vermelho com cheiros e sons. Me refiro ao montante de horas passadas escrevendo sobre os momentos que escrevi sobre.
Já não me lembro dessas horas porque não as passei vivendo. Não compartilhei na minha escrita olhares nem toques, não senti conexão com ninguém além de mim. Foram horas passadas comigo, mas também sem me dar atenção ao mesmo tempo que não tirei os olhos de mim. Horas não vividas, horas não descritas, horas não dignas de recordação.
Porque em noites vazias também eu respiro vazio e o sinto crescer dentro de mim. Os olhos enxergam nada, as mãos tocam o nada, o ar entra e o ar sai dos pulmões em ritmo constante. Corpo que continua funcionando no que não faz questão de comando pra funcionar. Corpo que faz o que sabe fazer, o que aprendeu a fazer, o que continua a fazer. Corpo que bebe água porque precisa beber água e come alguma coisa porque precisa comer alguma coisa e mija e escova os dentes e deita na cama. Nem sempre fecha os olhos. Nem sempre para de pensar.
E nessas noites na frente do espelho me vejo de frente e paro. Fico. Não sei por quanto tempo, mas talvez se passem horas. Me vejo no espelho e sinto a mente pensando tantos pensamentos ao mesmo tempo que não ouço nenhum. Só ouço ruído, burburinho, estática. Cancelo as vozes do mesmo jeito que já não ouvimos a obra do vizinho enquanto dormimos. Me vejo no espelho e levo as mãos aos braços, ao rosto, à cabeça raspada. Já não sei quanto posso confiar que sou real.
Dou sentido a tudo o que faço porque preciso. Porque se não encontro um mísero sentido pra dar nada faz. Ah… A experiência humana… Por que é que a gente existe mesmo?
Acho que uma parte de mim ainda não acredita. Como é que eu a poderia julgar? Eu também não acredito. Me sinto cada vez mais lúcida, pensando bem desde que parei de escrever, mas pode ser só porque com isso parei de dar de cara com a minha própria loucura. Me pergunto sobre o que é a minha arte e me deparo com o que eu queria que ela fosse. Não sei se tenho escolha.
São onze e meia da noite. Noite vazia. Estou sentada no sofá com o computador no colo, cobertor entre nós. Um gato por perto, dois, três dormindo. Oscillate toca na tv, o incenso já acabou tem um tempo. O ar está parado. Tudo está parado. Sei da existência de coisas, mas nada existe fora daqui. Me pergunto se é normal pensar o tanto que penso sobre como seria se eu do nada morresse. Penso que eu deveria deixar algo por escrito para não deixar nada não dito. Alguém precisa saber. Não posso morrer sem que pelo menos alguém saiba. Será que eu deveria levar isso pra minha psicóloga na próxima terça-feira? Acho que sim. Mas o que mais ela pode fazer por mim? Ainda mais aterramento?
Tenho medo de estar só quando eu morrer. Tenho medo de me tornar memória e depois deixar de ser. Tenho medo de tudo aquilo que não fica. Tenho medo e choro. Choro de medo como quando era criança: sozinha e no escuro. E se escrevo tão sincera é porque morro de medo de morrer do nada, me agarrando pelas unhas na borda do abismo que sinto puxar meus pés.
Eu já sei que quando a respiração se desespera eu só preciso focar em respirar. Sei que o que acontece é que eu estou sentindo como se fosse morrer, e que com esse sentimento explodindo no peito ainda consigo lavar o rosto e me preparar um chá. Aprendi com os anos a me alongar e massagear o corpo, a me trazer para a pele. Aprendi a mandar uma mensagem, a ir pra cama e aprendi até a conseguir dormir, mesmo depois dos pesadelos. Aprendi que noite vazia sempre chega feito onda e feito onda mergulho nela para atravessar.
5 de abril de 2024